~Parte 2 Quando acordei comecei a sentir vibrações, perceber sons, sentir as cores cinzas, roxas, laranjas pulsarem juntas dentro de mim. Eu podia enxergar, sentir, tocar melhor. Sentia todo os meus sentidos apurados. Sentia-me aberto a tudo, aos poetas, as dançarinas bêbadas, os pintores mendigos, o cheiro da cidade que me invadia pela varanda aberta. Eu estava como a muito tempo não sentia, nefalíbatico. Alice continuava imóvel.
Ao levantar, leve como nunca, vi K. de novo sentado em sua ilustre poltrona de revista. Ele agora lustrava alguns de seus instrumentos cirúrgicos já enferrujados, dispostos milimetricamente organizados em cima da mesa. Os seus “brinquedinhos”, como ele os chamava, já estavam brilhando como o hobby azul.
- Venha cá, rapaz – disse virando-se para mim, e arrumando a distancia de seus “brinquedinhos” como um maníaco perfeccionista.
- Agora eu sinto, eu consigo sentir, é tudo tão intenso, tudo tão... – disse eu, afobadamente atropelando as palavras.
- Não fale mais nada, apenas sinta – dizia, me interrompendo com sua doce e calma voz – apenas sinta! Fiz que sim com a cabeça e me aproximei agora calmamente. Conforme ia em sua direção, cambaleando, via que a luz refletia dos seus instrumentos polidos dançava em minha frente, me deixando cada vez mais embriagado. Aquelas luzes me seduziam, me provocavam e eu sorria sem perceber. Eu estava sentindo a alegria dos “brinquedinhos” do doutor, que também sorria.
- Vejo que não precisamos mais de certas formalidades, você sente? – sim, eu sentia, sentia tudo a flor da pele, sentia minhas veias saltarem, sentia que o sangue corria num ritmo bem mais acelerado, os pulmões eram cada vez menores para suportar tanto ar, a respiração mais forte e mais ofegante. O suor percorria o meu corpo, desarrumava-me inteiro.
O smoking tinha se tornado arrogante demais, despi-me do paletó que me pesava, da gravata que me enforcava, do cinto que me prendia, os sapatos que me apertavam.
Me despi até alcançar a nudez completa. Desse jeito eu poderia sentir-me mais livre, a liberdade, me sentia tão leve e atordoado que poderia voar em meio a tantas luzes, tantas formas.
- Deite-se aqui meu caro, logo, logo, o jantar será servido – disse-me batendo em cima da grande mesa, já bamba.
- Vou ajudar-lhe nos últimos detalhes para o grande jantar – disse K, enquanto pegava algum instrumento.
Deitado ali pude ver o grande lustre pendurado por duas final cordinhas que iam até o alto teto. Era um enorme lustre, bonito, brilhante, nele eu via o reflexo de todas aquelas cores, de todos os sons do ambiente. Enquanto me deliciava com a beleza e a tontura que me dava aquele gigante lustre retangular, K. havia pego uma gilete e depilado-me por inteiro, das pernas á cabeça, passando até pelas partes íntimas e sobrancelhas.
- Temo de fazer uma higienização completa meu caro – dizia K., enquanto eu continuava a me deliciar com minha embriagueis.
K. retirava outra seringa de seu, dessa vez de líquido diferente e injetava-o em mim novamente. Agora eu sentia-o invadindo e dilacerando minhas veias, sentia o ardor tomando conta de todo meu corpo, pouco a pouco.
- Não lhe expliquei toda a história de Alice, não é mesmo? – Eu era incapaz de responder-lhe, aquela nova injeção me proporcionava experiências mentais tão extremas que eu não podia quebrar, tinha que sentir como ele havia me recomendado. – Eu já havia lhe adiantado que aquela não era a parte triste de sua história – dizia enquanto marcava minha barriga com uma caneta vermelha – Quando Alice finalmente percebeu que não alcançaria a vida que tanto sonhara, que aqui as coisas não seriam como ela havia imaginado, Alice caiu nessas ruas sujas, com essas pessoas sujas e mergulhou de cabeça no inferno que é este lugar. – Enquanto dizia essas palavras, limpava-me com iodo e afiava seu bisturi – Alice mergulhou no inferno das drogas. Daqui de cima eu a via dançar, sempre drogada, com os outros vadios, ao som dos músicos falidos. Dali, daquela varanda, eu me apaixonei por seu vestido roxo, que alegrava essa cidade cinza, que a destacava do lixo e dos animais que vivem lá embaixo. Daqui eu saltei pra salvá-la de overdoses que a matariam se não fosse por meu amor. Depois da tentativa de suicídio em que minha bailarina atracou-se em frente á um carro, decidida a acabar com seu sofrimento. Decidi raptá-la e trancá-la aqui com quem a ama, com quem a quer salvar. Pensei que meu amor a salvaria, porém, ela preferiu as mesmas drogas que a tinham consumido e certa noite, fugiu. E para meu desespero, não deixou um bilhete sequer.
Minha paixão por Alice era do tamanho do mundo, eu não ia deixá-la fugir e se matar em qualquer esquina. Percorri os piores becos desse lixo a sua procura, passei três dias desesperado atrás do meu grande amor suicida. Eu não deixaria que nada de mal acontecesse aquela ingênua sonhadora – lágrimas escorriam de seus olhos, sua boca tremia, seu corpo tremia, era a manifestação de um medo que eu nunca tinha visto igual. – Fui encontrá-la em um consultório sujo e infectado, no beco mais imundo da cidade. Alice estava desacordada. Ela estava preste a perder alguns órgãos em troca de dinheiro e drogas. Ele, o traficante, havia oferecido míseros setenta reais em troca de alguns órgão que lhe seriam vitais, o crápula tinha a vitima perfeita, uma drogada suicida, a drogada pela qual me apaixonei vendo-a dançar bêbada junto ao lixo, ou mesmo caída no lixo.
A encontrei quase morta numa banheira cheia de gelo, ele a tinha enchido de remédios, Alice havia tido mais uma overdose, e eu, eu não tinha tido tempo de salvá-la , ele havia aberto sua barriga, a barriga de Alice, estava ali aberta, mal costurara! Ele iria roubá-la de vez de minha paixão.
Sorte minha, azar o dele, encontrei-o tentando fugir pela porta da frente. Louco de ódio, esfaqueei o filho da puta até perder as forças, até não conseguir distinguir aquela poça de sangue e carne de um corpo. – Fez uma pausa para tentar acalmar-se, eu já havia tomado muitas injeções, não sentia uma parte sequer do meu corpo, movia apenas os olhos, vislumbrando o lustre. De vez em quando era possível ver as mãos ou os instrumentos de Doutor K. sujos de sangue, do meu sangue. Mas as luzes eram tão bonitas. O vermelho, o roxo, o cinza, todos dançavam para mim entre os reflexos das flamejantes luzes refletidas dos cristais presos pelos dois finos fios ao teto.
- E esse imenso banquete ofereço á minha amada Alice, á ela seram destinadas as carnes que de ti tirarei. Te consumirei por meu amo. Sinta-se honrado por esse jantar! – dizia K entre soluços enquanto injetava-me a ultima seringa do liquido viscoso que me fez finalmente adormecer.
Dia primeiro de janeiro de
dois mil e oito
- á Alice, bailarina